
A palavra eutanásia deriva da composição dos vocábulos gregos “eu” (bom, verdadeiro) e “thanatos” (morte), o que literalmente significa “boa morte”, sem sofrimento. Só alguém profundamente insensível não sente compaixão por quem está a passar por grande tormento físico e psicológico e não compreende o cansaço de se estar vivo e ansiar a morte, tamanha a angústia a cada dia, que não traz a esperança de dias melhores. Não é, por isso, muito difícil abordar muitos dos argumentos a favor da despenalização da eutanásia:
- A liberdade e total autodeterminação individuais, incluindo o direito a dispor da própria vida.
- A proposta de lei é restritiva e tem critérios muito bem definidos, evitando assim exageros e a conhecida “rampa deslizante”.
- A decisão da eutanásia pode, efectivamente, decorrer de influências sociais, mas as mesmas são uma constante na vida de todo o ser humano.
- Se matar alguém é legalmente aceite nalgumas circunstâncias, incluindo autodefesa e cenários de guerra, porque não admitir a morte de um ser humano que sofre.
- Para quem se escuda no Juramento de Hipócrates, a que se submetem os médicos, e que os impede de matar um doente, saiba-se que o juramento original impedia, por exemplo, a realização de cirurgias. Ou seja, nada impede nova alteração com o progresso dos tempos.
- Ninguém é obrigado a pedir eutanásia, tal como não é obrigatório fazer um aborto.
Serão estes argumentos irrefutáveis? Neles parece constar bom senso, sensibilidade e compadecimento. Deste modo, como pode a eutanásia ser vista como algo cruel? Resposta por partes:
- A questão da total autodeterminação individual nesta proposta de lei é uma falácia. Estabelece gravíssimos constrangimentos dessa “liberdade”, ao introduzir os factores desigualdade e injustiça, com uma Comissão responsável por determinar os “contemplados” e os “excluídos”.
- Ao prever-se critérios bem definidos para o efeito, continua a não existir total autodeterminação individual.
- Não se pode igualar as pressões sociais em vida às pressões sociais para a morte – aqui é irreversível.
- As questões da autodefesa e cenários de guerra partem do pressuposto de que há outras vidas a proteger, o que justificaria a morte do indivíduo. Ora, na eutanásia, a vida em questão não pressupõe risco para outras vidas.
- Se o Juramento de Hipócrates alguma vez prescindisse do “respeito absoluto pela Vida Humana”, a Saúde do doente deixaria de ser a “primeira preocupação” do médico, como consta no documento, e passaria a ser segunda, pois prevaleceria a Vontade. A relação médico-doente ficaria ferida de morte.
- De facto, ninguém obriga a escolher a eutanásia, mas a Lei não funciona assim. São inúmeras as escolhas individuais, sem prejuízo para as demais, consideradas inaceitáveis do ponto de vista legal, social e moral, pelo que não se despenalizam. Tal acontece porque, para além da sua liberdade individual, o indivíduo faz parte da comunidade e tem uma identidade colectiva que resulta dos limites definidos pela cultura onde se insere.
O assunto da eutanásia não parece mais do que um fait divers para entreter as mentes mais distraídas, assente em pressupostos abstractos. Há assuntos bem mais importantes para debater e medidas a implementar. Os entendidos falam (e bem) da aposta em cuidados paliativos. A distanásia e a obstinação terapêutica são também um enorme problema. Não menos premente é averiguar o possível aumento directo ou indirecto de taxas de mortalidade, resultantes da cada vez maior ineficácia do Serviço Nacional de Saúde.
Também é fait divers o esforço para encontrar outras palavras para eutanásia, como “morte doce” ou “morte digna”, quando “eutanásia” é já uma palavra sem carga negativa (“morte boa”). O mesmo não é válido para outros conceitos nas actuais circunstâncias e que carecem de léxico mais adequado. Aquele que mata outro ou é autor moral dessa morte (como o legislador) é “assassino” ou “homicida”. Urge, por isso, encontrar outros conceitos, pois nenhum doente em intolerável sofrimento pretenderá chamar o “assassino” que lhe garanta a “morte doce”. Talvez: “anjo da morte”?
Joana Bento Rodrigues
Médica