Porque pertencem a pessoas que são animais

A vida humana é indisponível a quem quer que seja e dispor dela é sempre, não um acto de direito, mas um abuso de força. É o que aqui se fundamentará, semana a semana, em seis razões. Vamos à primeira. Não é preciso entender “natureza humana” em nenhum especioso sentido técnico para se perceber que dela decorre algo óbvio e indiscutível, a saber, que somos animais, que ocupamos espaço e tempo e que, portanto, somos seres do mundo, somos seres cósmicos. Por isso, a condição elementar para que qualquer valor de ética social seja justo é que ele inclua a integridade física e parta da integridade física. E é a integridade física o valor essencial do núcleo de intersecção entre uma ordem ética natural e a ordem jurídica positiva porque, sendo nós animais, a actualização de todas as nossas potencialidades pressupõe sempre o estarmos vivos. Tal significa que o corpo humano é uma fonte normativa natural, atribuindo ao conceito de “natural” a pura extensão de “anterior à consciência e à cultura”. Daí o estatuto ético da vida corporal ou dignidade da vida humana. Quando o sujeito recusa essa referência corporal às suas potências ou faculdades e erige a mente, enquanto se autoproduz, em critério de identidade (vide, por. ex. a gender theory) ou de valor da vida (“direito ao suicídio”), precisamente, cai numa mentira, isto é, num juízo da mente desligado da sua função natural de adequação à realidade objectiva. E esta irrelevância do corpo humano na autopercepção do sujeito hiperliberal de certa cultura contemporânea, entre outros seus filões neognósticos, é uma mentira que está a minar a percepção da indisponibilidade de toda e qualquer vida corporal humana. É que, na pessoa humana, a relação entre a mente e o corpo é de tipo essencial e não de tipo acidental. Uma mente humana não “usa” um corpo humano à maneira de uma soma de informação “suportada” numa pendrive, sendo irrelevante que a informação seja suportada por “este” ou “aquele” corpo. A mente humana, como complexo de potencialidades pertence por essência a este indivíduo animal que somos nós. É ela, a mente, que faz dele Pessoa mas é ele, animal vivo, a “substância individual” (na definição de Boécio) a “quem” cabe a designação de pessoa. É pois o corpo humano vivo que é pessoa e sujeito de dignidade. Assim, a irredutível dualidade humana entre corpo e mente é a dualidade não de substâncias ou seres em si, mas de dimensões adjectivas dessa una substância. De facto, o composto substancial humano realiza uma tal unidade que tudo o que se predica de uma dimensão se predica da outra. É assim, que, mesmo no caso de um mínimo, imperceptível, grau de actualização das faculdades mentais designamos pelo nome pessoal o corpo a “quem” pertencem essas faculdades não actuadas, sujeito e não objecto, e só por isso não se pode dispor dele. Mesmo diante do cadáver, que é coisa, res, posto que sacra (enquanto remete ainda para a pessoa que foi), a linguagem corrente opera esta metonímia cheia de espessura antropológica: por isso se fala no “funeral de Fulano” e se diz que “Fulano está sepultado em certo sítio”.

 É-se pois pessoa já pelo corpo humano e, por esta suplência entre dimensões, pode a pessoa humana realizar-se como tal “corporeamente”, pela simples corporeidade, enquanto marcada pela presença da mente. Inversamente, mesmo no caso de grave limitação na actualização das potências corporais (tetraplegia, amputação, etc.) bem pode a pessoa, “mentalmente” realizar-se, isto é, pela simples “mentalidade”, marcada que é também pela referência ao corpo a que pertence. Também nesta intercambiabilidade de propriedades se baseia a possibilidade de suprir outras dimensões naturais ou imanentes pelo seu correlato cultural ou transcendente. A maternidade adoptiva, por exemplo, é um constructo cultural operado mentalmente que, na falta natural (i.e., não querida por si mesma nem positivamente procurada) do seu correlato biológico, o pode plenamente suprir, por ser um vínculo tão autêntico como o seria se tivesse podido ser construído sobre a base da maternidade natural. Foi ainda com base na percepção desta unidade antropológica que o direito romano-cristão desligou a antiga validade do contrato matrimonial, da havida procriação. Na falta natural (i.e, não querida por si mesma nem positivamente procurada) da dimensão procriativa ou imanente do matrimónio, a dimensão unitiva ou transcendente pode supri-la com plena eficácia. Em suma, distinguindo entre os dois pontos de vista, na natureza humana de animal, percebemos uma dimensão imanente ao mundo e desta dimensão decorre o primeiro princípio de uma ordem ética natural, o da prioridade da vida sobre qualquer outro valor: tutelar o ser humano é necessariamente e antes de mais tutelar a vida individual do seu corpo. A seguir, na sua natureza de pessoa, perceberemos uma dimensão transcendente ao mundo da qual emana um segundo princípio complementar do primeiro, o de uma igualdade de todos os humanos perante a vida, igualdade tal que a torna, natural e normativamente indisponível a qualquer sujeito humano.

(Continua)

José Carlos de Miranda

Por uma Cultura da Vida – 6: Todas as vidas humanas são indisponíveis (I)