Porque não são propriedade do Estado.
A valorização moderna do sujeito racional despertou pouco a pouco as consciências para as discriminações injustas tratadas na semana passada. Mas infelizmente, mal motivada desde o princípio, exasperou-se numa mal-entendida liberdade individual; mal-entendida porque desligada do seu objecto, que é o Bem, e reduzida, negativamente, à ausência de limites dados à vontade de um sujeito individual. Este será, assim, tanto mais livre, quanto mais des-ligado das suas naturais associações, no fim de contas, uma perversão da noção de Pessoa. Coerentemente, essa liberdade comportou, na revolução liberal, a destruição violenta dos níveis intermédios de associação próprios de uma sociedade de sociedades, abrindo caminho – por acção ou por reacção – ao Estado dito, precisamente, “totalitário”, isto é, que pretende constituir ele mesmo “toda” a sociedade; para o que tende a dissolver, anti-subsidiariamente, qualquer outro nível de associação que não o do Todo. Desarticulados pelas revoluções liberais os múltiplos vínculos de solidariedades intermédias (regionais, religiosas, locais, profissionais, familiares), os indivíduos ficaram “livres”, isto é, “soltos” (e logo indefesos), perante o Estado. Estão hoje exaradas em “livros negros” as consequências sangrentas, quer dessa acção “libertadora” quer da simétrica e outro tanto totalitária re-acção socialista, seja ela nacional-sindicalista ou internacionalista – ESCANDE, R., (Dir.), Le livre noire de la Révolution, Ed. du Cerf, Paris, 2008 ; COURTOIS, S., (Dir.), Le livre noire du comunisme,Ed. R. Laffont, Paris, 1997, com a resposta comunista de PERRAULT, G., (Dir.) Le livre noire du capitalisme, Ed.Le Temps des Cerises, Pantin, 1998. E é já da vulgata escolar, a trágica Questão Social que foi a faceta económica do liberalismo, pela proibição das corporações, cruzada com a concomitante revolução industrial. Foi grande o preço pago para se poder aportar, pelo caminho da valorização do sujeito individual, à devida generalização, a todos, por igual, da indisponibilidade da vida humana, no abolicionismo face à própria pena de morte. Após o desmascaramento do verdadeiro projecto juspositivista, o preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, recorre explicitamente à “naturalidade” da “igualdade da família humana” e só não consigna explicitamente essa abolição pela urgência de alcançar a universalidade do signatário.
Hoje, qualquer excepção legislativa à indisponibilidade da vida humana é um desperdício daquele alto preço. Com efeito, ou bem que o legislador reconhece os seus limites naturais (i.e., anteriores a quaisquer construções sociais) na integridade física e indisponibilidade de toda e qualquer vida humana ou não se verão de novo razões para não exceptuar numerosas vidas “sem qualidade” (e muito menos as vidas nocentes); e a tendência totalizante do Estado convergirá com as já múltiplas pressões que gravam sobre os sistemas de saúde e sobre os sistemas prisionais das sociedades envelhecidas e violentas. De mãos dadas, o restauracionismo da eutanásia e da pena de morte servirão de válvula de escape para, outra vez, desumanamente, termos uma sociedade mais “sadia”. Pelo contrário, só reconhecendo e assumindo aqueles princípios – prioridade da vida e igualdade – como dados naturais, prévios à norma positiva, logrará o poder político preservar-se do plano inclinado – tão próprio do Estado Antigo como, após o liberalismo, do Moderno – que o leva a ser fim em si mesmo, em vez de meio de realização das pessoas em sociedade. Só dentro de tais limites naturais, o legislador se absterá de facilitar a amputação das partes malsãs da sociedade, quer chamando a si a “morte doce” do inocente, quer eliminando desnecessariamente o nocente em nome do Bem Comum; e, com isso, desmentindo a natureza intrinsecamente inclusiva de uma sociedade de Pessoas. Finalmente, só na aceitação de que a pessoa não é produto da consciência, é que a morte será plenamente entendida como simples aspecto da própria vida e, portanto, tão natural como ela; e se a vida é indisponível, a única morte digna da pessoa humana (digna porque correspondente à sua realidade integral) é a morte natural, tão natural quanto o é a substância da vida de que ela não passa de um aspecto adjectivo. A esta luz, só poderia legitimamente causar a morte, uma autoridade pública que, antes, tivesse podido causar a vida. Como facto natural que é, a vida não cai sob a alçada do direito positivo e a ficção da sua disponibilidade (disponibilidade a quem quer que seja) não passa de um abuso de poder.
(Continua)
José Carlos de Miranda