Porque são limites naturais do poder
Vimos as consequências éticas do carácter, a um tempo, animal e pessoal, do indivíduo humano. Consideremos finalmente as implicações que esse carácter traz para o poder político e para o legislador em particular. Sempre houve, é certo, sociedades que, consuetudinária ou juridicamente, discriminaram injustamente entre indivíduos quanto à tutela da vida humana com base em critérios móveis ou subjectivos, nomeadamente com base no grau de actualização das potências. A antiguidade romana recordava, posto que com algum horror, a Rocha Tarpeia do seu período arcaico, à diferença de certo indigenismo de hoje quando menciona idênticos infanticídios rituais (o estado brasileiro de Roraima saltou para o primeiro lugar nas estatísticas de homicídio em virtude da contabilização, polémica, de homicídios deste tipo, amiúde acobertados por antropólogos indigenistas!) Mas, para os humanos mais vulneráveis, piores que as sociedades que ainda não conhecem metafísica, podem ser, pelo acréscimo de força e eficácia, as sociedades que já não conhecem metafísica. As autoridades de saúde pública da Islândia congratularam-se recentemente com o facto de terem conseguido realizar o primeiro país downfree (i.e., um país em que não há pessoas afectas do síndrome de Down, vulgo, mongolismo). Sabe-se de facto que a pessoa mongolóide tem à partida comprometido, em grau mais ou menos severo, o exercício das suas potências. Também é certo que uma doença pode ser erradicada mediante a supressão do doente e cabe evidentemente à sociedade humana gerir a saúde populacional das diversas espécies puramente animais, a começar pelas domésticas. Deverá a mesma sociedade agir assim com os humanos? Se se perder a distinção entre pessoas e demais seres (é esse o risco de uma grave questão ética e social contemporânea conhecida por “animalismo”), nada obsta. Tal como nas sociedades de simples indivíduos animais, a tutela da vida seria a tutela do todo orgânico social em detrimento das vidas disfuncionais e, como tal, “menos dignas”. E a diferença entre as pessoas e o resto assenta nas duas categorias ontológicas já analisadas: acto e potência e essência e acidente.
Mas com base num conceito de personalidade iluminado por estas categorias, é possível dizer que aqueles sobreditos costumes, aqueles institutos jurídicos, são injustos; ou, pela via afirmativa, é possível reconhecer uma origem natural (i.e., anterior à cultura e, por isso, universal) na peculiar relação invertida entre o todo e a parte nas sociedades humanas. Quando se descreve o “corpo social” humano, o seu “tecido social” e respectivas “células” e “órgãos”, recorremos a um antigo paradigma biológico que só não é falaz se tiver por pano de fundo o paradoxo daquela inversão. Num organismo, a parte existe em função do todo e é avaliada por essa função. Não assim, no peculiar organismo que seria a sociedade humana. Poderá mesmo tratar-se de um dos traços da hominização. O antropólogo Richard Leakey (quem sabe inspirado pela condição pessoal de amputado dos membros inferiores na sequência de um acidente aéreo) quis identificar o hominídeo a partir do qual teria evoluído o primeiro Homo num certo Australopithecus Anamensis, entre outros motivos por poder hipotizar a partir de algumas vértebras um exemplar de uma vintena de anos de idade afecto de espinha bífida. A sobrevivência de um indivíduo sem locomoção implicaria uma conduta desconhecida em qualquer outra espécie (LEAKEY, R., The origin of Humankind, Ed. Basic Books, New York, 2008). Na sociedade humana, não avaliamos a parte em função do todo mas, inversamente, avaliamos o todo pelas condições que cria para a realização da parte. Não poderia ser de outro modo quando as partes são pessoas. Cada vez que alguém, na Roma arcaica ou na Europa e na Amazónia dos séculos XX e XXI, se furtou mais ou menos abertamente ao seu “dever” cívico positivo, eugenista ou eutanasista, fê-lo e fá-lo a partir de um dado natural, isto é, anterior à cultura: o de que, pela sua natureza de animais-pessoas, aqueles que a sociedade humana vota à morte são iguais aos outros. Por isso, qualquer norma positiva que os discrimine é injusta e reclama desobediência e abolição.
(Continua)
José Carlos de Miranda