EUTANÁSIA, AUTONOMIA E DIGNIDADE?
Em 2016, o Movimento Cívico para a Despenalização da Morte Assistida – Direito a Morrer com Dignidade reintroduziu com pompa e circunstância o tema da eutanásia no debate cívico, social e parlamentar.
Os defensores da morte a pedido da vítima, sofredora e desesperada, baseiam-se essencialmente em dois pilares: “os direitos individuais no domínio da autodeterminação da pessoa”; e “o direito a morrer em paz e de acordo com os critérios de dignidade de cada um”.
Contudo, estas premissas partem de pressupostos errados. Acreditar que a autonomia deve poder tudo o que quer, inclusive atentar contra a própria vida, e que a dignidade é disponível resulta numa menorização da própria pessoa.
É em nome da autonomia que se reclama para o doente, através de pedido volitivo e livre, o direito a decidir pôr termo à própria vida, bem como o tempo e a circunstância para tal. Aquela, embora sendo um dos pilares fundamentais do exercício médico, não é um valor absoluto.
Pregar aos sete ventos o primado da autodeterminação deveria obrigar à colocação duma série de questões: que vontade está a expressar esse desejo? De que forma foi expresso? Que mecanismos de protecção existiram para proteger a sua formulação? Por último, se são todos os seres humanos titulares do direito à autonomia (exceptos casos bem definidos, como crianças ou portadores de deficiência cognitiva), por que razão apenas aqueles em sofrimento podem dispor dele e requisitar a morte assistida e antecipada?
Afinal, aceitar a infalibilidade da autonomia como principal determinante do homicídio a pedido e, simultaneamente, recusá-lo para indivíduos saudáveis, é pugnar por uma desigualdade grave em termos morais e legais. Daqui decorrerá o famoso fenómeno da rampa deslizante, uma loucura que é intrínseca à própria eutanásia (e não resultado de uma lei eventualmente mal concretizada).
Além do mais, a existência da autonomia absoluta não passa de uma falácia argumentativa. Somos porventura autónomos ao nascer? Somo-lo quando, ainda crianças, damos passos temerosos? Podemos declarar-nos totalmente autónomos enquanto vivemos debaixo do tecto dos nossos pais? Prevalece este sentimento todo-poderoso na velhice e na doente?
Tal como não é admissível atribuir importância máxima à autonomia, também não o é a redefinição do conceito de dignidade. Isto implicaria argumentar que esta não é inerente ao ser humano, um valor evidente em si mesmo, um outro nome de Pessoa. Ajuizar a dignidade de outrem tendo em conta somente a sua existência numa determinada condição ou espaço temporal é minorar a própria pessoa. A pessoa é digna, sem que tal esteja dependente de qualquer outro factor.
Importa ainda lembrar que o direito à vida, requisito único da dignidade, é indisponível. Pela mesma lógica que preside à defesa da eutanásia, poder-se-ia justificar situações inumanas, como a escravatura, a mutilação genital feminina, o trabalho em condições desumanas ou a violência doméstica, desde que houvesse consentimento da vítima e que essa se sentisse digna enquanto tal.
Ainda que nos falte apenas um ser, todo o mundo fica despovoado, diz o famoso adágio: somos de tal forma necessitados de relação que, para a espécie humana, a solidariedade e a preocupação pelo outro são valores irrenunciáveis. Afirmar que a autonomia pode tudo, que a dignidade é moldável, que somos, enfim, seres egoístas e autofágicos, é negar a própria condição humana.
É verdade que a nossa humanidade está impregnada de lugares escuros, momentos sem esperança, dores incuráveis; mas é aí, nesses becos sem saída da nossa vida, que cada um de nós deve intervir como veículo de misericórdia e compaixão.
No fim de contas, quando tudo chegar ao seu término, as mais belas expressões de respeito pela dignidade e autonomia terão sido dadas, não por quem contribuiu para a morte, mas por quem, no respeito pelo Homem, acolheu e amou toda a dor, toda a fraqueza, toda a vulnerabilidade: em suma, toda a humanidade.
Francisco Maria Velosa Costal