two boys standing together

Quem acompanha as discussões públicas em torno da vida humana nas últimas décadas, consegue perceber que houve uma alteração significativa sobre a perceção do valor da vida humana nas sociedades da maioria dos países.

De facto, apesar da evolução da biologia que permitiu tirar quaisquer dúvidas sobre o momento em que se inicia a vida humana, nunca se relativizou tanto o seu valor, principalmente no seu início. Tudo começou em 1973, no EUA com o famoso caso Roe vs Wade em que uma jovem alegou que tinha o “direito” a abortar até à viabilidade do bébé (entre 6 e 7 meses), depois de uma gravidez causada supostamente por uma violação. 

Depois deste caso cheio de contradições, um pouco por todo o mundo, as legislações foram sendo revistas no sentido de, gradualmente, liberalizarem o aborto. O esquema usado foi sempre o mesmo: começa-se com os casos extremos (violação, má formação do bébé, etc), passa-se para uma liberalização nas primeiras semanas (no caso português, 10 semanas) e vai-se alargando o prazo até ao nascimento. Por outro lado, alarga-se também as condições para se poder abortar, como é caso de Espanha, onde uma rapariga de 16 anos não pode conduzir nem beber álcool, mas pode abortar mesmo sem consentimento dos seus pais [1].

O corolário deste plano inclinado legislativo vem de França, onde recentemente o presidente Macron anunciou uma proposta de lei para incluir o “direito” ao aborto na Constituição francesa de forma “irreversível” [2]. Ou seja, percebe-se que, sem argumentos perante a ciência, os defensores desta agenda fraturante necessitam dos recursos legislativos mais robustos para imporem a sua visão desumana para o drama do aborto. 

“a vida é a vida, é sempre sagrada. Temos sempre que a proteger e condenamos quem quer que seja que atente contra a vida humana”.

António CoSTa, Debate quinzenal na Assembleia da República, 18 de Outubro de 2023

Em paralelo com estes processos legislativos, esta agenda fraturante pôs em marcha uma mudança cultural profunda, a diferentes níveis, para conseguirem justificar a sua visão. Essa mudança cultural incluiu alterações linguísticas absurdas. A título de exemplo, o termo aborto foi substituído por “interrupção voluntária da gravidez”, como se fosse possível, de alguma forma, retomar uma gravidez que foi terminada.

Todo este preâmbulo leva-nos a uma questão muito atual: o conflito israelo-palestinano. Independentemente das posições de cada um, magoa-nos profundamente ver tantas vidas inocentes serem mortas, tanto do lado palestiniano como israelita. E perante uma desproporção de recursos em cada um dos lados do conflito, têm sido muitas as vozes que defendem que existe um direito absoluto à vida humana e que é preciso condenar quem atente contra ele. Em particular, é relevante destacar as palavras do nosso primeiro-ministro que, no debate quinzenal do passado dia 18 de Outubro na Assembleia da República e em resposta a uma dúvida da oposição sobre a posição de Portugal sobre este conflito, referiu que “a vida é a vida, é sempre sagrada. Temos sempre que a proteger e condenamos quem quer que seja que atente contra a vida humana”. [3].

Não deixa de ser curiosa, e simultaneamente hipócrita, esta posição sabendo que é proferida pelo secretário-geral do partido que em Portugal mais contribuiu para a lei em vigor do aborto, orgulhando-se até desse feito num congresso do partido em 2018 [4].

Voltando ao tema da alteração linguística, é de assinalar que são os próprios autores que colocam em causa a nova semântica que deram aos termos que adulteraram. Basta ouvir o que Josep Borrell, antigo ministro de vários governos do partido socialista espanhol (PSOE) e atual Alto Representante da União Europeia para a Política Externa, disse sobre o problema humanitário que existe atualmente na faixa de Gaza: “O secretário-geral da ONU falou de um cessar-fogo, que é certamente muito mais do que uma pausa. Uma pausa, como o próprio nome indica, é uma pausa. Ou seja, uma interrupção de algo que depois continua. É um objetivo menos ambicioso do que um cessar-fogo, que significa um acordo entre as partes” [5].

Josep Borrell, Alto Representante da União Europeia para a Política Externa (imagem: TSF)

Ou seja, o socialista Borrell explica que os termos pausa ou interrupção, aplicados a uma atividade, pressupõem que a mesma será continuada [6]. Ora, no caso do aborto, a gravidez nunca continua, sendo invariavelmente terminada.

Borrell, tal como António Costa e tantos defensores da liberalização do aborto, contradizem-se e mostram, com as suas palavras, que o valor da vida humana para eles é bem relativo: depende sempre daquilo que querem defender em cada instante.

Luis Oliveira
Casado, pai e engenheiro de software


[1] https://www.elmundo.es/espana/2023/02/16/63edf73821efa068388b45dd.html 

[2] https://observador.pt/2023/10/29/macron-anuncia-lei-para-inscrever-direito-ao-aborto-na-constituicao-francesa-de-forma-irreversivel/ 

[3] https://www.rtp.pt/noticias/mundo/costa-critica-cerco-a-faixa-de-gaza-que-viola-direito-humanitario_n1522541 

[4] https://jornaleconomico.pt/noticias/antonio-costa-no-congresso-em-defesa-do-casamento-gay-o-aborto-e-da-eutanasia-a-que-chamou-alargar-liberdades-312784/ 

[5] https://www.tsf.pt/mundo/ue-apela-a-pausa-humanitaria-para-ajuda-a-gaza-17217468.html 

[6] Note-se que, em Espanha, os promotores das leis do aborto também usaram o termo “Interrupção voluntária da Gravidez” para designar a prática do aborto (ver https://www.boe.es/eli/es/lo/2010/03/03/2/con )

O conflito israelo-palestiniano e o valor “relativo” da vida humana
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